O BC e o plot twist nos serviços bancários


Com open banking e PIX, sistema de pagamento instantâneo, o BC espera uma oferta até então impensável de novos produtos bancários. Ainda não nos recuperamos das entranhas do Brasil expostas 24h e traduzidas em dados estupefacientes. É como se a pandemia alagasse os bueiros sujos e jogasse tudo nas ruas para nos obrigar a assistir ao desfile macabro dos números.

Fica até difícil escolher um destaque. Entre os mais conhecidos, a contagem dos mortos e a disseminação do antigo vírus da ganância, que mostra sua contabilidade nos desvios milionários. Impressionante as operações de desvio de dinheiro público serem executadas com o mesmo senso de urgência de quem precisa ser intubado para salvar a própria vida.

Mas a análise do balanço da covid-19 tem números que indicam outras doenças crônicas. E não precisa ser cientista de dados para comprovar a gravidade. O conjunto de informações divulgadas pelo governo parece um censo acidental realizado nas filas da Caixa Econômica.


É que nas agências de todo o país foi confirmada a existência de povos isolados, operando na informalidade, com documentos irregulares e sem acesso aos serviços financeiros. São 45 milhões de desbancarizados. É quase toda a população da Espanha à espera de serviços que começaram a ser oferecidos ao mundo a partir do século 15.

Quando se trata de Brasil, estamos tão acostumados a olhar o copo meio vazio que surpreende o plot twist protagonizado pelo Banco Central para ajudar a resolver esse problema. Operando à margem da tragédia nacional, a instituição vem acelerando um conjunto de regras que regulamenta a implementação do open banking no Brasil.

Por definição: compartilhamento de dados, produtos e serviços. É aí que começa a ficar interessante. Dividido em capítulos e com cronograma anunciado, tem como primeira fase justamente democratizar o acesso aos dados sobre produtos e serviços financeiros das instituições. A consequência imediata é permitir que o consumidor possa comparar de forma simplificada e escolher a oferta mais atraente. Tudo consolidado em um único aplicativo, por exemplo, com taxas, rentabilidade, liquidez.

A segunda fase implementa as regras para compartilhamento dos dados cadastrais dos clientes. E a terceira, o histórico de informações financeiras. Se lembrarmos que até para nós, os donos, o acesso a esses dados é burocrático, imaginem os efeitos de repartir o novo petróleo com outras instituições e fintechs.

A gente já discutiu em edições e cartas passadas o tabu sobre nossas informações, e já sabemos que estamos todos expostos e vendidos na dark web e na publicidade das big techs. No entanto, podem existir muitas vantagens em ter o controle sobre dados cadastrais e financeiros e o poder de dividi-los com quem desejarmos. Tem consequências profundas em onboarding de cliente e análise de crédito, por exemplo. Essas são duas jornadas que vão sofrer uma transfusão de transformação digital sob a governança estabelecida pelo BC.

Com open banking e PIX, sistema de pagamento instantâneo, o BC espera uma oferta até então impensável de novos produtos bancários. Além de mais baratos, dará autonomia para que o cliente desenhe o plano de voo dos seus dados.

Se o PIX estivesse em vigor, evitaria que o acesso aos recursos do auxílio emergencial se parecesse com a perigosa saga dos argonautas em busca da lã de ouro do carneiro alado. Tornaria desnecessário que quase 17 milhões de pessoas, já de posse do benefício, repassassem o dinheiro para a conta poupança de terceiros.

É muito interessante que essa revolução no sistema financeiro seja capitaneada por bancos centrais, na maioria dos países. São mudanças radicais de paradigma que podem acelerar uma nova oferta de produtos e serviços ágeis, transparentes e com time to market menor. Fintechs se beneficiam, mas os bancos também podem ter muitas vantagens, afinal são instituições que sofrem tanto com os monolitos e sistemas legados quanto com as frequentes auditorias. Veremos o cenário onde o velho e o novo serão obrigados a cooperar. Infraestrutura será commodity, e o serviço passa a ser o rei para reter ou conquistar clientes.

No entanto, nessas flores podem ter espinhos. E eles vêm exatamente da tecnologia. Bem-vindos ao mundo das APIs abertas, interfaces de programação que permitem a comunicação entre diversas aplicações. O que vimos na Europa foi uma aceleração no Reino Unido, pioneiro na regulação e implementação do open banking, e uma difusão mais lenta nos demais países do bloco.

O motivo é a falta de um padrão para o desenvolvimento dessas APIs. E esse é o principal detalhe do open banking que precisa ser levado em conta. Para funcionar adequadamente, é preciso chegar a um acordo sobre o protocolo padronizado de compartilhamento. Se cada um criar suas APIs e falar sua própria língua, o caminho para a inovação será mais longo. Padronizar as especificações para o desenvolvimento dessas APIs é obrigatório. Compartilhamento de dados será uma escolha do cliente.

Além de regulamentar, padronizar e promover um ambiente que propicie a competição, os BCs precisam ir além. Como será o mundo onde qualquer um pode vir a oferecer serviços bancários, principalmente as big techs, já dententoras de tantos dados? Veremos um cruzamento entre open banking e LGPD regulando a formação de novos monopólios? Os bancos adotarão a infraestrutura como serviço para diversificar suas ofertas em outros mercados? As possibilidades e os riscos parecem infinitos nesse admirável universo das APIs e da transparência.

A única certeza que eu tenho é que o mundo será dividido novamente. Desta vez entre os que vão se bancarizar pós-open banking e os que sofreram com as ofertas que temos hoje. Avessas à interoperabilidade, difíceis de comparar e deixando à margem quase um quarto dos brasileiros.

Fonte: Época Negócios